Centenário, o Estádio São Luís faz hoje 100 anos de vida. Incrível, e verídico. Também incrível é a travessa de cadelinhas à mesa com António Boronha, presidente do Farense nos anos 80 e 90 [1989 a 1992 e 1995 a 1998, além de vice presidente da FPF entre 1998 e 2002], ali ao lado do Mercado de Faro, em Setembro, por altura da Vuelta. Esta é a segunda parte de uma conversa iniciada com os muitos desaguisados com Pinto da Costa.
E o Benfica, que tal era a relação com os presidentes?
Apanhei o Jorge de Brito, primeiro, e aquele baixinho, depois.
Baixinho?
Sim, baixinho. Casado com uma que trabalhava na hotelaria aqui em Vilamoura.
Damásio?
Isso mesmo, Manuel Damásio.
E o Sporting?
Ahahahah, o Sporting. Sousa Cintra, algarvio como eu. O nosso primeiro contacto foi um problema, porque o Belenenses roubou-me o preparador físico Terzinski, um búlgaro entendido na matéria. Então arranjou-se um esquema para o Cintra roubar o Terzinski ao Belenenses e, a partir daí, forjei uma grande amizade com o Cintra. Quando ia a Lisboa, andava com ele para todo o lado. E quando não andava, tropeçava nele em restaurantes.
Assim do nada?
Tenho uma história engraçada, na noite da mão do Vata. Fui ver esse Benfica-Marselha para o camarote, com o Luís Baptista, que depois foi presidente dos árbitros, e o Cintra também estava lá, ligeiramente mais abaixo, com uns gajos da embaixada francesa. Quando foi o golo do Vata, nós não percebemos se foi com a mão. A seguir, entrámos no Gambrinus para jantar mas aquilo estava a abarrotar e então fomos ao Abílio, onde já estava o Cintra com o presidente da Câmara de Aljezur. O Cintra viu-nos, chamou-nos e sentámo-nos. O tal presidente da câmara aproveitou a nossa presença para se baldar. Fomos cear e, às duas da manhã, entrámos no Elefante Branco: eu, Luís Baptista e Cintra. Quem estava lá? O Alder Dante, árbitro, o César Correia, outro árbitro, aqui de Faro, meu vizinho, uma gaja das relações públicas do Benfica e ainda a equipa de arbitragem do Benfica-Marselha. O árbitro era o Marcel van Lagenhove, que eu já o conhecia. Mal me vê, levanta-se e vai ter comigo a perguntar pelo golo, se foi com a mão ou não. Disse-lhe que nada vi no estádio, mas que a rádio dizia que sim, tinha sido. Ele ficou pior do que estragado. Tentei chutar a preocupação para canto e fui apresentar-lhe o Cintra. Mal o Cintra percebe quem é, diz-lhe em bom português: ‘Vocês são todos iguais, sempre a gamar para o Benfica.’ Ahahahahah, e o Marcel a perguntar-me o que ele tinha dito. Não valia a pena traduzir, respondi-lhe.
Ahahahah.
Outra do Cintra. Um dia, apareço com o Luís Baptista no estágio do Sporting em Mafra e dizemos ao Cintra que queremos o Portela, lateral-direito. O Cintra diz que nem pensar, que o Portela faz os 100 metros em 12 segundos. E o Luís Baptista responde-lhe de imediato: ‘a gente quer um lateral, não o queremos para o atletismo.’ O Cintra não se desmancha e pede um milhão de dólares. Estava na moda, ele pedia sempre um milhão de dólares. E eu disse-lhe: ‘vamos levá-lo e se o vendermos por um valor acima desse valor, damos-te o milhão de dólares’. O Portela ficou aqui para sempre. Ahahahah.
Mais jogadores do Boronha, deixe-me ver: Rufai?
Já cá estava quando cheguei ao Farense na minha segunda vez. E vendi-o para um clube de Alicante, será o Hércules?
E ele, porreiro?
Era o único gajo do Farense sem ordenados em atraso.
Como assim?
Não sei, ele lá conseguia receber sempre a tempo.
E como pessoa?
Era um trapalhão do c*******.
Porquê?
Era, só isso.
Dava-se bem com ele?
Ó Rui, nunca tive chatices com ninguém. Os meus problemas chamaram-se Humberto Coelho, António Oliveira, Gilberto Madaíl e João Rodrigues. De resto, tudo bem. Mas ninguém me dobra e não cedo aos meus princípios. Comigo, aldrabices e vigarices nem pensar.
Falou do Humberto. Conheceu-o quando?
Conheci-o fora do futebol, quando era presidente do clube de golfe de Vilamoura. Ele jogava golfe e fizemos amizade. Depois cruzámo-nos na federação, eu como director e ele como seleccionador no apuramento para o Euro-2000.
E?
O gajo começou com exigências e merdas. Ficou azedo, o ambiente, E o Madaíl era um cobarde e nunca assumia a culpa: se as coisas corressem bem, o mérito era dele; se as coisas corressem mal, a culpa era minha.
E o que correu mal?
Quando fomos para o Europeu, o Humberto quis levar um preparador físico dele, o José Augusto, do remo. Nada contra, só que nós da federação tínhamos uma grande equipa de profissionais. E o Humberto bateu o pé, ou José augusto ou nada. Fez-me essa exigência e eu disse ao Madaíl.
E o Madaíl?
Todo f******, ‘esse gajo é sempre a mesma m****’. Mas cedeu.
E os outros da federação não foram ao Europeu?
Não, foi o José Augusto. O pior foi quando o Humberto me diz no dia em que partimos para a Holanda que também queria mais seis mil contos.
Porquê seis mil contos?
Ia agora chegar aí. Era eu que fazia os prémios de jogo dos jogadores – o prémio do seleccionador era com o presidente da federação. Então resolvi inovar e propus aos convocados para o Europeu um prémio de presença, que equivalia a uma vitória e um empate na fase de apuramento. Dava seis mil contos, vá. Seis mil contos à cabeça para todos, antes mesmo de se começar a jogar. O Humberto soube e também quis, sendo que o contrato do Humberto já estava assinado desde 1998 e tudo escrito, direitinho em matéria de massas. Estás a ver o meu espanto a receber aquela indicação do Humberto no dia em que íamos para o Europeu, em pleno Hotel Tivoli. Disse-lhe que estava fora dessa conversa, aquilo era entre ele e o Madaíl. E ele, Humberto, diz-me isto: ‘então é assim, se não me pagarem os seis mil contos, não embarco.’ Faltavam seis horas para o voo.
E como se resolveu?
Antes do voo, íamos almoçar à Expo para a despedida. E fomos. Lá transmiti ao Madaíl essa situação e reunimo-nos à beira de uma escada rolante. Aquilo foi num instante e o Madaíl concorda com os seis mil contos. A partir daí, começou a azedar. Rui, o Humberto estava em pânico antes do primeiro jogo.
Porquê?
Pauleta suspenso, por ter sido expulso no último jogo da qualificação, com a Hungria. Sá Pinto lesionado, num treino já na Holanda. Sobrava o Nuno Gomes. Que, por acaso, foi o herói como autor do 3:2.
Em pânico, porquê?
Sei lá. Tínhamos ainda o Nuno Gomes. E a verdade é que eu estava tranquilo para a segunda parte com a Inglaterra, só não sabia se íamos ganhar por três, quatro ou cinco. Agora que o início foi mau, lá isso foi. Mas o Figo e o João Pinto empataram e endireitámo-nos.
E o ambiente ao intervalo, bom?
Rui, o ambiente entre jogadores da selecção foi sempre bom. Sempre. Eles são todos muito amigos, muitos deles convivem desde a formação. O pior é o resto à volta.
E a meia-final com a França, nesse Europeu?
Foi tudo muito rápido, não deu para fazer nada. Os jogadores estavam fora de si, sobretudo o Figo, que quis agredir o árbitro. Mas como era o Figo, ninguém fez nada. Os outros três é que apanharam grandes suspensões.
Paulo Bento, Nuno Gomes...
E Abel Xavier.
Ah pois, verdade. Desses jogadores todos que apanhou, quem é, por exemplo, o mais introvertido?
Petit. Quando entrou na selecção, era muito introvertido. Depois, claro, soltou-se. Mas ainda me lembro de o apanhar no elevador do hotel e ele todo cauteloso a entrar, ahahah.
Grande.
Quando foi a queda da ponte de Entre-os-Rios, a direcção da federação fez uma reunião para dar um donativo jeitoso àquela gente. Como aquilo era tudo um banco de forretas, deram cinco mil contos. No estágio da selecção, apanhei o capitão Fernando Couto e pedi uma reunião com todos os convocados para falar do assunto da ponte. A ideia era que todos dessem dinheiro e, se tudo corresse bem, o encaixe teria de ser superior ao da direcção da federação. Então lá nos reunimos na selecção do hotel, o Fernando falou e eu falei. O Figo, que era um forreta e não pagava um café a ninguém, começa logo a patinar. E com uma desculpa divertida: ‘E não é por mim, é pelo Petit: é a primeira vez dele aqui e vai dar já dinheiro?’
Qual foi o resultado dessa reunião?
A malta queria dar. Rui Costa e João Pinto foram os mais interventivos, Figo era a resistência. O que interessa é que a malta deu a volta ao Figo e então concordámos em dar o prémio de presença do jogo na Irlanda.
Quanto era?
600 contos cada um. Multiplica por 23 e chegas a um valor muito superior aos cinco mil contos da direcção da federação. Atenção, eu sempre trabalhei pro bono para a federação. Não é como agora o Humberto, que ganha 14 mil euros por mês mais carro.
…
Tenho outra do Petit, ainda relacionada com a Irlanda.
Conte.
O Oliveira mete-o de início e não é que ele dá uma valente porrada no Robbie Keane, o número 10 deles? Ainda nem havia cinco minutos e a vedeta deles já estava avisada.
Tramado, o Petit.
E boa gente. Aliás, só tive um problema pontual com jogadores.
Quem?
Rui Jorge, que é um gajo porreiríssimo. Só que ele estava de cabeça perdida no jogo com a Coreia do Sul e começou a insultar o bandeirinha. Levantei-me do banco para acalmá-lo e ele responde-me ‘não me chateies, vai à merda.’ Bem, abri-lhe os olhos e aquilo serenou. Foi isso, nada de especial. Passou, pronto.
Isso já é Mundial-2002, João Pinto expulso. Como foi ao intervalo, dentro do balneário?
O problema não foi o soco, embora o João nunca tivesse admitido nesse dia que tinha dado o soco. Depois vimos pela televisão, às quatro da manhã. À mesma hora, se bem se lembra, acontecia o milagre da Polónia estar a ganhar aos EUA. Fui ao balneário de Portugal ao intervalo e saí para desanuviar. Quando estou no túnel, o seleccionador holandês do Coreia...
Guus Hiddink?
Hiddink, sim. Dá-me um toque no braço e diz-me ‘vocês estão malucos, este resultado serve aos dois; avise lá o Oliveira para ter calma’. Transmiti a mensagem ao Oliveira.
E?
Foi o que se viu. O problema também era que o Oliveira estava com a cabeça em todo o lado, menos no Mundial. Ele já tinha assinado pelo Benfica, antes do Mundial, num encontro apadrinhado pelo João Rodrigues em casa do Vieira, em Carcavelos.
Oliveira no Benfica, essa é boa.
Se não fosse o fracasso do Mundial, o Oliveira teria ido para o Benfica. Outra: antes do Mundial, o Oliveira casou-se no Porto. Fui ao casamento, juntamente com o Madaíl e o Rui Costa.
Já me lembro desse evento.
Mega-evento, o João Havelange foi, e até é o padrinho.
Espectáculo.
Eu e o Rui [Costa] viemos logo embora, tínhamos avião às três e tal para Lisboa.
Tão cedo?
Estávamos de férias até ao Mundial, e queríamos aproveitar junto das nossas famílias. Então apanhámos um avião para Lisboa e, depois, alugámos um carro até ao Algarve.
E é amigo do Rui Costa, porque?
Ele tinha casa em Vilamoura, os nossos filhos davam-se bem e passámos muito tempo juntos em 1998, porque Portugal não foi ao Mundial e as férias dos jogadores estenderam-se. Uma vez, já a trabalhar para a federação, estava em Bari numa Med Cup sub17 e havia um Fiorentina-Lazio. O Rui sabia que eu estava no sul de Itália e ligou-me para ir ver o jogo. Tratou de tudo, avião Bari-Roma-Florença, motorista do presidente da Fiorentina à minha espera para o hotel e camarote presidencial no estádio. Depois do jogo, jantei com ele. E com o Nuno Gomes. Antes do jantar, estava eu no balneário da Fiorentina, quando me lembrei de ir ao balneário da Lazio. Lá fui para cumprimentar o Fernando Couto e o Sérgio Conceição. Saí de lá com a camisola do Couto. E essa é a camisola da nandrolona. A famosa.
Maravilha, onde anda ela?
Sei lá, deve estar com o meu filho.
De volta ao Mundial-2002, e a sua relação com o Madaíl?
Mal o comandante do avião disse para desapertarmos o cinto na viagem da Coreia para Portugal, nunca mais vi o Madaíl na vida. Fui lá para trás, juntei-me a Pauleta, Figo, Petit, Godinho. Malta boa. Como tinha ligação para Faro, juntamente com o Nuno Gomes, evitei os enxovalhos no aeroporto de Lisboa. E a besta do Madaíl disse que eu tinha fugido ao enxovalho. Demiti-me três dias depois.
E o Oliveira, nunca mais o viu?
Já nem sei, acho que não. Repito a ideia, o Oliveira não estava com a cabeça no Mundial. Aliás, em Maio, lembro-me de o ter avisado para começar a pensar no Euro-2004, porque éramos anfitriões e não íamos jogar a qualificação. Então tínhamos de escolher jogos para nos preparar. E ele diz-me ’ó vice’ – ele tratava-me assim – ‘esqueça que estou noutra, outro que se preocupe com isso’.
E aparece o Scolari.
Antes ainda aparece o Manuel José, que recebeu um bom avanço. Só que uma semana depois o anão do João Rodrigues e o Pinto da Costa arranjam uma reunião em Madrid com o Madaíl mais a Nike e lá se arranja o Scolari, campeão mundial em título. Como o Madaíl precisava de dar a volta por cima, arranjou-se o patrocínio de um gajo importante da Nike, futuro presidente do Barcelona, o Sandro Rosell, e toma lá o Scolari.
Pois é, a Nike patrocinava a selecção.
Mas a Adidas fez tudo para nos ter, porque o contrato da Nike estava a acabar. A Adidas estava cheia de força, já tinha Argentina, França, Espanha e queria muito Portugal. Até nos oferecia um avião pintado com as nossas cores. Sei disto porque participei num almoço com a Adidas em que eles escreveram tintim por tintim.
E continuámos com a Nike.
Pois, até hoje. Outra do Oliveira, lembrei-me agora: ele não se preparou nada, não sabia nada dos EUA e, claro, fomos abalroados. Antes mesmo desse jogo, ainda a quatro meses do Mundial, a FIFA convocou uma reunião preparatória com a presença de cinco elementos de todas as federações: director da federação, director de comunicação, chefe da polícia, chefe médico e seleccionador. Na véspera da partida, o Madaíl liga-me a dizer que o Oliveira só vai em executiva. ‘Então e nós, os macacos, vamos na executiva?’ perguntei-lhe. ‘Nem pensei, resolva isso e meta-nos todos em primeira classe.’
Resultado?
O Oliveira amuou e não foi nessa viagem, o Madaíl não teve tomates para nos passar a todos para a primeira classe. Ó Rui, desculpe lá, já se faz tarde, tenho de ir. Qualquer coisa é só ligar.