Para recordar a última vez que o histórico UD Leiria esteve no segundo escalão do futebol português é preciso recuar até 2008/09, altura em que o conjunto leiriense terminou em segundo lugar e garantiu, na altura, o regresso à Primeira Liga. Mas isto tudo foi antes do emblema da região Centro cair «nas ruas da amargura» e descer aos distritais devido a graves problemas financeiros, onde se manteve durante mais de uma década. Até agora.
Ao longo da época, o UD Leiria já havia revolucionado a forma como se via a relação dos adeptos com o jogo, antes, durante e depois, ao longo da época, aplicando uma série de iniciativas, que iam desde a oferta de bilhetes, passando por iniciativas nas escolas e culminando até em concertos antes dos jogos, que foram permitindo à Equipa do Lis contar com molduras humanas no seu estádio, o Dr. Magalhães Pessoa, de invejar até para a larga maioria dos emblemas da Liga Portugal Bwin.
«Se dissesse que temos uma estrutura que não chega a uma dezena de pessoas, vai dizer que sou doido, mas é verdade. É fruto de muito trabalho e o resultado ficou bem patente naquele último jogo em casa, onde olhámos uns para os outros e sem dizermos nada, percebemos que valeu a pena. Para quem não tem o Leiriismo à flor da pele, sentir a alegria das pessoas é algo inexplicável», começa por ler, em entrevista exclusiva ao zerozero, Armando Marques, presidente da SAD do UD Leiria, cargo que ocupa há dois anos.
«A malta não gostava de futebol e estava distanciada da cidade e do clube. Leiria era o expoente máximo do insucesso social e hoje somos uma referência nesse aspeto. Isto porque trilhámos o caminho da credibilidade e mostrámos às pessoas que é possível disfrutar do espetáculo que é o futebol e que vai além do futebol. Temos essa envolvência com a comunidade, que envolve a juventude e vários estratos da sociedade. Temos que ter esta capacidade de envolvência, porque o futebol tem a capacidade de chamar gente e dar visibilidade às coisas como mais nada tem. Isso é o primeiro passo para que as pessoas depois se amarrem ao clube da terra. As pessoas da minha idade nunca vão alterar o clube do coração, mas daí a nossa aposta na juventude, porque essa geração sim vai cimentar todo o trabalho que estamos a fazer. Estamos a semear para mais tarde colhermos os frutos de sustentabilidade de um clube que quer ser referência desta região. É nesse sentido que queremos que se sintam bem no nosso estádio e tenham gosto em apoiar o União. Tudo isto leva-nos a um destino: o sucesso», acrescenta.
22197. Parece difícil de acreditar, especialmente quando falamos de um jogo do terceiro escalão do futebol português, sendo praticamente apenas ultrapassado pelos maiores clubes e nível nacional. Mas é verdade e só surpreende completamente os adeptos mais distraídos daquilo que tem sido a época do Leiria.
Houve uma revolução naquele histórico emblema português nas últimas duas temporadas, mais acentuada em 2022/23, e os números comprovam-no. O primeiro «aviso» tinha sido logo na 1ª jornada da fase regular, onde o Leiria recebeu o Vitória FC (4-0) com 12581 pessoas nas bancadas. Com maiores e menores oscilações, os números estiveram sempre lá e foram sendo impressionantes, até estarem 18124 adeptos nas bancadas para o duelo com o Belenenses (2-4). Fazendo as contas, o Leiria teve, em média, 9039 adeptos por jogo, na condição de visitado. Números invejáveis para muitos.
Armando Marques destaca um nome para o Leiria ter alcançado estes números: Nélio Lucas.
«Na última fase da época passada, nós oferecemos bilhetes às pessoas para criar uma onda de solidariedade para com os refugiados ucranianos, para as pessoas trazerem bens essenciais. De facto, conseguimos trazer milhares de pessoas, mas com a entrada de um novo investidor, mas essencialmente do Nélio Lucas, que tem uma vivência no futebol e em grandes clubes mundiais, implementou uma estratégia que resultou nisto. Envolver uma comunidade, uma cidade, uma região, para que viessem ao futebol. Fizemos várias iniciativas, as mais visíveis foram os concertos, mas não só. Há um trabalho diário junto das escolas, dos nossos parceiros, de algumas instituições, que resulta na plenitude. Hoje, temos a envolvência de várias empresas, que são nossos parceiros, e uma ajuda que não se vê a nível económico-financeiro, mas com determinadas permutas entre empresas e parceiros. Isso resulta no espetáculo que culminou no último jogo em casa, onde tivemos 22 mil pessoas. Já tivemos 18, 17, 15, 14, 13. Várias assistências recordes. Tudo isso foi pensado por ele [Nélio Lucas], porque ele tem uma visão do futebol onde trouxe o que já se pratica noutros países, ao nível da envolvência que o espetáculo desportivo e do futebol têm. Não queremos que o futebol seja um simples jogo de 11 contra 11. Tem que ter uma envolvência antes e no pós jogo, como está à vista nas nossas iniciativas, com a fanzone e a Porta 10», descreve-nos.
«Não sabia o que sentir. É algo que quando acontece um golo tão tarde, em que já estamos a fazer contas de cabeça, a pensar como vai ser a próxima deslocação, em Felgueiras, como ficaram os outros resultados. De repente, marcamos e conseguimos algo que andamos atrás há uma década, em campeonatos inferiores. É um misto de emoções tão grandes, que nem consigo explicar o que senti naquele momento. Nem parecia real. Vimos pessoas à volta a chorar e a rir de euforia, tanto sentimento à nossa volta. Uma felicidade imensa, é algo que só quem vive aquele momento, pode ter noção do sentimento. Olhámos para a espinha dorsal do nosso grupo e nenhuma conseguia descrever o sentimento da mesma forma, todos vivemos de forma diferente, depois de trabalharmos juntos. É algo indiscritível. Foram muitos anos a trabalhar por isto, muitos anos a morrer na praia», começa por descrever Rui Quinta, líder da Armata, claque da UD Leiria, em declarações ao zerozero.
Rui tem 33 anos e é gestor de qualidade numa empresa japonesa de componentes para moldes, mas isso é apenas para colocar comida na mesa, porque se nota pelo seu discurso que o amor pela Equipa do Lis fala mais alto que (quase) tudo. Criou a Armata em 2007, ainda dentro de outra claque da UD Leiria, e desde aí que o projeto tem vindo a crescer a nível de apoio e números, tendo passado pelos anos «negros» da equipa nas Distritais, até à emoção desta subida.
«Sempre tivemos a mentalidade de ser um grupo de amigos. Foi assim que fomos seguindo a equipa pelas distritais. O ano passado houve uma situação dentro do grupo que nos fez ver as coisas de outra forma. Um membro jovem faleceu num acidente de viação e teve um momento marcante, porque tivemos o seu pai a pedir para que este fosse enterrado com um cachecol da nossa claque, afirmando que ele era sempre mais feliz nos dias de jogos, onde se juntava a nós. A partir daí começámos a trabalhar de outra forma, a aproveitar o contexto do grupo, porque estas enchentes já se tinham verificado no passado, e começámos a agarrar pessoas ao pouco, que foram abraçando o projeto. Este ano já tivemos uma média muito acima daquilo que é a realidade nacional. Esta fase final foi algo muito bom de ver, porque a nível de dimensão e apoio, estivemos a par dos maiores grupos do país.», conta-nos, apontado para as 1500 pessoas, apenas no «seu» setor, nesse jogo com o SC Braga B.
Rui fala de uma infância e crescimento «um bocadinho diferente», recordando com emoção na voz os jogos que ia ver com o avô e os seus tempos de formação na UD Leiria e acaba a elogiar as estratégias implementadas pelo clube: «Quando as crianças nascem num ambiente onde são pré-formatadas para ser de determinado clube, é difícil fazê-las pensar de outra forma. Aí, o Leiria entrou bem, porque entrou numa fase onde ainda é possível fazê-las sentir isto desde pequeninas. Isto é um trabalho que morre sem continuidade. Isto é um trabalho que vai demorar 10/15 anos, mas se calhar daqui a uma década vamos ter retorno deste trabalho contínuo. Tinha dúvidas no início do projeto, mas neste momento sinto que o trabalho é muito bom, apesar de algumas melhorias que podem ainda ser feitas.»
«Em termos de merchandising, acho que já vendemos mais camisolas este ano do que em toda a história do clube. O nosso fornecedor desportivo já me disse que vendemos mais que todas as equipas da Primeira Liga. Hoje em dia a envolvência com os parceiros não pode ser feita como antigamente, onde só pedíamos ajuda. Temos que lhes dar algo em troca e fazer entender junto deles que aquilo que estão a apoiar vai resultar no que vão receber, que é visibilidade, reconhecimento e notoriedade. É para isso que trabalhos e esta estratégia, que é virgem em Portugal, porque alguns já estão a tentar imitar. Ainda há pouco tempo surgiu a notícia que o Fortuna Dusseldorf, da Alemanha, vai iniciar esta oferta de bilhetes. Mas como costumo dizer, não há nada como o original. Este conceito do futebol espetáculo e envolvência do público é algo que já se faz há muitos anos nos Estados Unidos e com a experiência que o Nélio Lucas trouxe de grandes clubes mundiais, como o Atlético Madrid, Bétis, Manchester City, Valência, Real Madrid, onde colaborou, trouxe-as para cá e adaptou-as ao contexto do Leiria, criando esta máquina de divulgação de uma marca que queremos valorizar, que é a marca UD Leiria. Queremos cimentar e liderar o futebol na região Centro, que precisa de uma referência. Se repararmos, entre Lisboa e Porto, existe o Arouca, na Primeira Liga. Na Segunda Liga, há o Feirense e o Tondela. Há muitas centenas de quilómetros para conquistar. Nós se tivermos a capacidade, e temos, de atrair todos esses parceiros e população, vamos e queremos ser uma referência nesta região. E vamos conseguir», diz-nos Armando Marques, questionado sobre o prejuízo/lucro destas iniciativas.
«Realmente, a nível de merchandising, de equipamento, de bar, foram provavelmente superiores a todos menos aos dos chamados “clubes grandes” – embora para mim grande seja o Leiria, o meu clube é que é grande. O clube colocou cerca de uma centena de camisolas à venda, com um custo de 50 €, e esgotaram em poucas horas. As pessoas não pagam bilhete e por isso chegam ao estádio e pensam em comprar um cachecol ou algo do género. Acabam a gastar mais. Conheço quem tenha esperado meses para comprar uma camisola oficial por estarem sempre esgotadas. Começo a ver algo que nunca vi antes, que é andar na cidade de Leiria e ver pessoas com a camisola a passear na rua. Já usam a camisola e o símbolo com orgulho. Estamos a criar uma identidade nas pessoas, algo que direções passadas não perceberam que era o mais importante. Isto é um mal que se vive num país inteiro, talvez com exceção de cidades como Guimarães e Braga», concorda Rui Quinta
E agora? O que se segue para o Leiria? Será que estas iniciativas e a questão dos bilhetes gratuitos constantemente é exequível na Liga Portugal SABSEG, onde vão atuar na próxima época? Da direção aos adeptos, concorda-se: é para continuar, mas melhorando o que foi feito de menos bom.
«Podemos esperar mais do mesmo do que foi positivo, porque não fizemos tudo bem. Trabalhamos todos os dias para melhorar e ter sucesso desportivo, social e sermos uma referência para o futebolês e o desporto. É preciso credibilidade. Com estas iniciativas, tenho a certeza absoluta, porque se fala do Leiria por questões positivas, fizemos algo diferenciador. Não entrámos em disputas, mas concretizámos e temos factos para mostrar que com trabalho, estratégia e visão, podemos lá chegar», aponta Armando Marques.
«Para mim o Leiria faz falta na Champions [risos]. Não pagamos para sonhar. Espero que daqui a dez anos estejamos em patamares internacionais, como já estivemos no passado. Felizmente, com a idade que tenho, já vivi momentos muito bonitos noutros patamares e acredito que merecemos voltar. Acredito que outros clubes históricos, que neste momento estão a passar por estas dificuldades, merecem estar noutros patamares. Vejo clubes em patamares superiores sem qualquer tipo de mística, de ligação ao que quer que seja. Clubes sem estádio, a jogar longe da sua cidade. Clubes constituídos pela sua SAD, que para mim, enquanto adepto de futebol, não faz qualquer sentido. Mas também é preciso que estes clubes cresçam internamente. Não nos podemos agarrar à história. Os clubes históricos têm que trabalhar para voltar onde já estiveram, porque não merecem mais que um clube pequenino que teve mérito para lá chegar», aponta Rui Quinta
«Acho que os outros patamares também querem o Leiria. Em termos de ambição, não tenho dúvidas que o Leiria quer estar noutros patamares. Agora, esses patamares também devem querer e sentir falta de projetos, estruturas e experiências como as que estamos a vivenciar, para partilhar com os melhores», concorda Armando Marques.