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BlackCat 24-05-2024, 03:41
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(Reportagem originalmente publicada a 18 de outubro de 2023)
[Som de campainha a tocar]
«Boa noite! O meu nome é Diogo Matos, sou jornalista do zerozero e estou a fazer uma reportagem sobre pessoas que conseguem ver futebol a partir de casa. Da sua varanda consegue ver o relvado do [inserir nome do clube]? Aceita conversar comigo?»
Nota prévia: O jornalista nunca deve ser o foco de uma reportagem, mas acreditamos que há uma certa beleza no percurso que culminou neste trabalho. O conceito era relativamente simples: ao longo dos (curtos) anos que levo nesta profissão, fui-me apercebendo que, nas imediações de certos estádios, há prédios nos quais é possível ver jogos de futebol.
Tal cenário deixou-me curioso: como será ver uma partida desta modalidade que tanto nos apaixona sem deixar o conforto de casa? Como é a rotina destas pessoas em dia de jogo? Que histórias têm para contar?
Pegue no computador ou no telemóvel, sente-se (pode mesmo ser na varanda de casa) e sinta-se convidado a conhecer os relatos de quem aceitou abrir a porta de casa ao zerozero.
«Claro que sim! Daqui a pouco começa o jogo e não me dá muito jeito falar, mas fique com o meu número e depois conversamos. 91 XXX XX XX»
Ricardo Sá foi o primeiro 'adepto' a responder de forma positiva ao repto que lançámos. Cerca de 1h30 antes do apito inicial do Famalicão-FC Arouca, no passado dia 22 de setembro, tocámos à campainha do último andar de um dos empreendimentos habitacionais que têm o Estádio Municipal de Famalicão como 'vizinho' e, de forma pronta, a surpresa deu lugar à predisposição para auxiliar na concretização da reportagem.
De resto, foi muito devido ao facto de vermos com frequência o até então desconhecido Ricardo na varanda do 6º andar que nos surgiu a ideia de fazermos este trabalho.
Apesar de assumir que não vê todos os jogos do Famalicão e que não programa a sua vida em função do facto de o 'Vila Nova' jogar ou não no Municipal, Ricardo, de 50 anos, não esconde a satisfação por ter a oportunidade de ver encontros da 1ª Liga sem sair do conforto de casa. «É uma forma diferente de ver o jogo, até porque o estádio do Famalicão não tem grandes condições para um clube da 1ª Liga. Ou seja, desta forma tenho mais conforto e acabo por estar numa posição privilegiada», começa por nos contar.
Mais do que o ato de assistir aos encontros em si, esta acaba por ser a 'desculpa' ideal para se juntar familiares e amigos: «Na 1ª Liga há vários clubes aqui das redondezas e, como tenho amigos de clubes como Vizela, Paços de Ferreira, Vitória SC e FC Porto, eles pedem-me para vir cá ver o jogo. Estando em casa, tento recebê-los. Compro umas cervejas, eles trazem alguma coisa também e ficamos duas horas na varanda a conviver e a ver o jogo.»
De resto, na conversa que tivemos com Ricardo, percebemos que muitos dos seus amigos só tiveram real noção do local onde este vivia porque o viram... na televisão. «Mudei-me para este apartamento pouco antes da Covid-19 surgir e tudo isto acabou por ser um pouco libertador para mim. Eu podia ver ao vivo o que os outros não podiam e acabei por me sentir um privilegiado. Às vezes aparecia na transmissão televisiva e foi aí que muitos amigos meus perceberam onde é que eu vivia. Quando a situação acalmou um pouco, alguns pediram-me para vir cá a casa ver os jogos e eu deixei, mas sempre com os cuidados necessários», recorda
Até aqui, tudo parece perfeito no ato de viver ao lado de um estádio, certo? Pois bem, a verdade é que também há aspetos menos positivos. «Uma parte mais complicada é quando há jogos à segunda-feira à noite, que desestabilizam um pouco as nossas dinâmicas familiares. Ouve-se sempre os festejos dos golos e as claques mais efusivas, pelo que isso se torna complicado quando se tem uma criança de 12 anos em casa. Para além disso, o ato de desmontar toda a publicidade do relvado só termina por volta da meia noite ou uma da manhã. São vários tratores pequenos a fazer a recolha dos painéis, aspeto que, de forma natural, provoca algum barulho», remata Ricardo Sá.
Sendo certo que há um maior glamour associado à 1ª Liga, uma dos objetivos que tínhamos para esta reportagem era encontrar um clube dos campeonatos distritais no qual este cenário se verificasse. Queríamos sentir a borracha do sintético e ouvir o grito um pouco mais desafinado a sair da janela do prédio.
Partindo deste princípio, fizemos um rápido trabalho de investigação pelos clubes de Vila Nova de Gaia, cidade na qual está sediada a redação do Zerozero, e encontrámos alguns que cumpriam o requisito de ter prédios altos juntos aos seus recintos desportivos.
O primeiro que visitámos foi o Canidelo, mas, ao cabo de 18 campainhas pressionadas, não tivemos sorte. Alguns moradores dos prédios não estavam em casa, outros não viam os jogos do Canidelo a partir de casa e, por fim, a única senhora que efetivamente via jogos a partir da janela não quis participar na reportagem.
Era hora de nos deslocarmos até ao recinto do Coimbrões.
A abordagem foi um pouco diferente aqui. Por baixo do prédio no qual existem janelas com vista para o Parque de Jogos Silva Matos há uma lavandaria à qual nos dirigimos para explicar o que pretendíamos e para pedir indicações. «Veio ao sítio certo e à hora certa, amigo. Esta senhora vê todos os jogos do Coimbrões em casa»
Foi desta forma que o proprietário da lavandaria nos colocou em contacto com a cliente Margarida Domingues, sexagenária que não perde uma partida em casa do seu Coimbrões.
«Mudei-me para aqui há seis anos e foi aí que fiquei com o bichinho do futebol. Antes disso não ligava nenhum, tanto é que o meu marido sempre foi ver os jogos do Coimbrões ao estádio e eu ficava no carro à espera dele. A partir do momento em que vim viver para aqui, tudo mudou. Comecei a espreitar os jogos, fui ficando entusiasmada e, agora, não perco um jogo do Coimbrões», começa por nos relatar.
O 5º andar em que Margarida vive é fácil de identificar: é o único apartamento que tem uma bandeira do Coimbrões à janela em dia de jogos. Posto isto, é fácil perceber o amor que a adepta tem pelo clube: «O meu marido continua a ser sócio, mas passou a ficar em casa a ver os jogos comigo. Quando começa a dar a música no estádio, sei que está na hora de vir para a janela. Eu sinto é que sou pior do que o meu marido... Ele começa a 'mandar umas bocas' aos jogadores e aos árbitros e eu faço igual ou pior por cima [risos]. Ele enervava-se um bocado a ver os jogos no estádio, assim podemos estar completamente à vontade. Aqui em casa ninguém me vem prender.»
Tal como já tinha acontecido com Ricardo Sá, em Famalicão, o apartamento de Margarida Domingues acabou por servir de refúgio para os amigos do marido Eduardo, isto quando o futebol voltou ainda sem público nas bancadas devido à Covid-19. «Alguns colegas do meu marido, que por norma vão ao estádio, sabiam que nós vivíamos aqui e vinham para cá ver o jogos. Tínhamos de ter cuidado, mas foi engraçado», vinca Margarida, que se despede de nós com um desejo: «O Coimbrões já vai com cinco vitórias seguidas, que continue assim!»
Um dos estádios em que muitos adeptos de futebol pensam quando se fala de ver futebol a partir de casa é o do Estoril. Os canarinhos são presença assídua no escalão mais alto do futebol português, pelo que é comum ver-se, através de transmissões televisivas, pessoas a assistir a jogos do conjunto agora orientado por Vasco Seabra a partir dos prédios que circundam o recinto.
Tal como havia acontecido em Coimbrões, as coincidências felizes voltaram a estar do nosso lado e, no exato momento em que chegámos à entrada do prédio no qual pretendíamos tocar às campainhas, encontrámos um morador a regressar a casa.
Fernando Garcia é brasileiro, natural de São Paulo, e chegou a Portugal em janeiro de 2021. Como fã incondicional de futebol, não podia ter ficado mais satisfeito quando percebeu que o apartamento para o qual estava prestes a viver tinha vista privilegiada para o relvado do Estoril.
«Eu sou fanático por futebol, pelo que viver num apartamento que tem vista para um campo acabou por ser uma coincidência muito grande. A minha família gostou muito deste apartamento desde início, mas cheguei a comentar com a minha esposa que, se estivéssemos em dúvida entre dois apartamentos que gostássemos, o campo seria um fator decisivo», revela, acrescentando ainda que, devido a tudo isto, ganhou um carinho pelo Estoril.
A conversa com Fernando foi interrompida por uma interação bem humorada com um vizinho (a quem pedimos o contacto e com quem também falámos- já lá vamos), num sinal claro do bom ambiente que existe no prédio: «Nós temos um grupo de Whatsapp de moradores aqui do prédio que, na altura do jogo entre o Estoril e o Benfica, encheu-se de mensagens. Não só de adeptos do Benfica, mas também de pessoas que estavam do lado do Estoril. É uma dinâmica muito interessante, por vezes até vemos os jogos juntos. Um pouco na brincadeira, até digo que tenho um camarote na varanda de casa.»
Referindo que tem amigos portistas, benfiquistas e sportinguistas que costumam ver os jogos em sua casa quando estes clubes visitam o Estoril, Fernando descreve ainda o impacto que todo este cenário teve na sua família. «O meu filho Matteo tem oito anos e, para além de jogar nos escalões de formação do Estoril, vê todos os jogos do clube aqui na varanda. A minha sogra também ganhou esse hábito, até vê treinos», assevera. Perante este cenário, a pergunta foi inevitável: nunca foi contactado por clubes adversários do Estoril para fornecer qualquer tipo de informação?
«Não, isso nunca aconteceu [risos]. O que acontece é termos pessoas a tentar entrar no prédio para irem para o terraço ver os jogos. Ou seja, há pessoas que fingem ser moradores do prédio e dizem que se esqueceram das chaves, mas, de forma natural, nós não abrimos a porta. Isto acontece principalmente nos jogos contra as equipas grandes.»
O vizinho com quem Fernando interagiu durante a nossa conversa foi Miguel Magro, que vive no último andar do prédio e que prontamente se disponibilizou para participar na reportagem. No entanto, há um ressalva importante a fazer: Miguel é adepto do Benfica e apenas vê jogos quando as águias se deslocam à Amoreira.
«É sempre uma festa! Ainda há pouco o Benfica veio cá jogar e isso foi motivo para juntarmos família e amigos. Nas semanas que antecedem estes jogos tenho sempre pessoas amigas a enviarem-me mensagens a dizer que querem ver os jogos aqui. Também tenho amigos sportinguistas a fazer o mesmo quando o Sporting joga cá, mas eu digo-lhes que não. Aqui só entram benfiquistas», descreve de forma bem disposta, dando um exemplo concreto da forma como os amigos gerem as respetivas agendas para poderem estar presentes em sua casa quando o Benfica joga: «Tive um amigo que voltou de lua de mel há duas semanas e enviou-me logo mensagem a dizer "Chego de lua de mel e vou aí ter para ver o Benfica...". Acredito que arranjou forma de a lua de mel terminar mesmo nesse dia [risos].»
Tal como já foi referido, não são muitas as ocasiões nas quais Miguel Magro vê jogos do Estoril a partir da varanda. Ainda assim, a conversa com este adepto encarnado termina com um resumo perfeito dos benefícios que existem no ato de ter um estádio como 'vizinho'. «Estar aqui e estar no estádio é mesmo muito semelhante. Acredito até que seja melhor do que os camarotes VIP do Estoril, já que temos o conforto de nossa casa. Não pagamos bilhete e ainda se come e bebe melhor», conclui.
É comum dizer-se que o futebol não é uma ciência exata, sendo esta uma premissa que também se aplica à forma como se vê a modalidade. Todos concordamos que há poucas coisas melhores do que entrar num estádio para vermos um jogo do nosso clube de coração, mas não há também beleza no ato de se poder assistir a uma partida sem deixar a varanda de casa?
